quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Quem te viu quem TV




Quem TV? (Sorria, você está sendo filmado)

Comentário sobre a obra Quem te viu Quem TV de Renato Almeida

QUANDO O VÍDEO SAI DA CAIXA PRETA:

A tela, a câmara, o som, as narrativas da imagem cinemática1 estão fugindo da Caixa Preta da sala de cinema e invadem gradualmente as galerias e museus, aqueles Cubos Brancos “próprios” das artes plásticas. Não vamos explorar neste curto texto as razões, conseqüências e mudanças que este processo supõe para as duas áreas de produção (cinema e artes plásticas) e vamos tentar só explorar, a partir de uma destas “imagens invasoras”, a Obra Quem te viu Quem TV, de Renato Almeida, algumas das estratégias empregadas pelos artistas que, apropriando-se das ferramentas do vídeo, protagonizam hoje este deslocamento.

INVISIBILIDADE E VISIBILIDADE, MATERIALIDADE E IMATERIALIDADE: A invisibilidade do circuito de apresentação próprio da Caixa Preta é um paradigma: o projetor é escondido ao fundo da sala, junto à pessoa encarregada pela projeção, a tela branca deve estar sem rugas para que podamos nos esquecer dela, e se tomamos consciência dela (caso tivera manchas, por exemplo) percebemos isto como um fator de ruído indesejável. O mesmo acontece com o sistema elétrico, com os elementos técnicos do som e, em geral, com toda a armação que constitui os bastidores da sala. Ao invés, muitas das obras que empregam o vídeo no Cubo Branco da sala de exposição ressaltam este circuito de apresentação, criando, a partir dos projetores, das câmaras, etc., vários tipos de materialidade no contexto de um espaço que, como a galeria, constituiu a sua identidade a partir da exibição de imagens/objeto: quadros, esculturas, desenhos. No caso de Quem te viu Quem TV a própria câmara vira um “objeto-escultura” além de um elemento simbólico-metafórico (um pássaro encerrado naquela gaiola que pendura do teto?)

DISPOSITIVO E PERCURSO: O tipo de olhar da sala de projeção está já garantido e padronizado: o espectador entra, senta na cadeira, desliga o celular, as luzes fecham, o filme começa, e durante uma hora e meia ele vai fingir que “não está lá”. Se precisara se deslocar (para ir ao banheiro, por exemplo) deve faze-lo com o maior sigilo possível, deve tornar-se tão invisível quanto puder. No museu, na galeria, acontece o contrario: o espectador caminha, se desloca, faz um percurso, não tem uma temporalidade marcada porque a obra plástica não tem um principio nem um final. Em Quem te viu Quem TV este deslocamento é central: toma tempo, mas uma vez o espectador entende que a imagem projetada na parede provém da câmara que está na gaiola, começa a fazer um percurso ao redor dela, a criar um jogo entre o próprio corpo e a sua representação, desfigurada pela natureza semi-esférica do espelho, que lhe devolve a sua imagem projetada na tela. Alias a obra é precisamente esse jogo, feito do percurso ao redor da gaiola e dessa interatividade com a representação.

Tudo isso constitui o que estamos chamando aqui de dispositivo: a própria peça é na verdade uma estrutura de visibilidade que funciona em vários níveis: a câmara de circuito interno, o espelho côncavo que desfigura o objeto projetado, a natureza da imagem que, além da deformação muda a perspectiva (a câmara aponta para abaixo e projeta num plano vertical a horizontalidade do plano capturado), o percurso do espectador, a interatividade proposta a partir da circularidade da gaiola, o jogo deste circuito de captura e projeção em tempo real.

A imobilidade, a invisibilidade do circuito, o caráter estático do espectador, todas as categorias paradigmáticas da “Caixa Preta” são aqui abaladas, ou talvez simplesmente “traduzidas” a essas outras categorias do Cubo Branco... mas também não é só isso... a imagem fixa da galeria de artes plástica fica também em suspense nesta obra feita, por definição, de imagem-tempo, só que a temporalidade deve ser construída aqui pelo próprio espectador.

Mas, a partir do próprio título, e da sua essência como circuito interno, a obra propõe, ainda uma outra leitura: ela nos remite ao universo da vigilância e do controle, às onipresentes câmaras de vigilância... o jogo, a citação humorada, a interatividade lúdica talvez sejam a única maneira de lidar com o paranóico fantasma da nossa eterna vigilância mutua. Devemos sorrir, não só porque estamos sendo filmados, mas porque a vigilância constitui, cada vez mais, a única maneira de estar próximo dos nossos vizinhos e semelhantes. Vigio-te pelo tanto és alguém para mim... estás sendo filmado, pelo tanto existes...

Adolfo Cifuentes

Belo Horizonte, Agosto de 2008



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